Opinião

Anatomia da habitação sustentável: um novo contrato urbano em Portugal

25/09/2025

Anatomia da habitação sustentável: um novo contrato urbano em Portugal

Margarida Galanducho

Living Group

O país precisa de uma estratégia dual, robusta e pública nos grandes centros urbanos, cooperativa e regeneradora nos territórios de baixa densidade.

Nas últimas décadas, o debate sobre habitação em Portugal tem oscilado entre diagnósticos alarmistas e soluções avulsas, quase sempre marcadas pela reatividade e ausência de estratégia estrutural. No entanto, perante a escala do problema atual, com mais de 120 mil famílias sem acesso a uma habitação condigna, um mercado dominado por pressões especulativas e um Estado cronicamente ausente do planeamento urbano, torna-se imperativo abordar a questão da habitação não apenas como política pública, mas como uma ciência.

O que está em jogo não é apenas o preço do metro quadrado, é o próprio modelo de cidade, de comunidade e de contrato social. A habitação é, em suma, o esqueleto urbano de uma sociedade e, como qualquer sistema vivo, precisa de coerência, equilíbrio e inteligência de engenharia.

Planeamento estratégico de longo prazo

O primeiro fator comum a todos os casos de sucesso é o planeamento estratégico de longo prazo. Nenhuma cidade que hoje é citada como referência em política habitacional, de Singapura a Viena, chegou a esse estatuto por via de medidas pontuais. O exemplo de Singapura é ilustrativo: desde 1960, o governo planeou e executou, com consistência, um programa nacional de habitação pública que hoje alberga mais de 80% da população. O mesmo se pode dizer de Viena, onde, desde os anos 1920, se construiu uma política habitacional municipal de longo alcance, com mais de 200 mil apartamentos públicos geridos pela cidade. Estes exemplos não nasceram de programas eleitorais transitórios, mas de uma visão de cidade inscrita em tempo profundo. Em contraste, Portugal tem operado com lógicas de curto prazo, muitas vezes condicionadas por ciclos orçamentais, fundos europeus e consensos políticos frágeis. Urge, portanto, institucionalizar o planeamento estratégico da habitação como política de Estado, com metas intergeracionais e compromissos políticos firmes.

A habitação nos sistemas urbanos

Em segundo lugar, destaca-se a integração da habitação nos sistemas urbanos mais amplos: mobilidade, saúde, educação, comércio e lazer. Em Singapura, os bairros da HDB (Housing Development Board) são planificados como cidades em miniatura, com estações de metro, escolas e centros comerciais integrados. Em Viena, a proximidade a parques, bibliotecas e equipamentos culturais é uma prioridade no desenho de bairros sociais. Estes sistemas urbanos articulados combatem a fragmentação territorial e promovem coesão social. Em Portugal, a ausência desta visão integrada tem gerado bairros ou cidades-dormitório, zonas de exclusão urbana e dependência excessiva do transporte automóvel.

Controlo do solo

O terceiro fator é o controlo regulado do solo, bem como a utilização dos ativos públicos para fins sociais. O papel do Estado é determinante na gestão da terra. A propriedade pública do solo permite não apenas baixar os custos de construção, mas também condicionar o uso, garantir acesso equitativo e evitar a especulação. Na Alemanha, por exemplo, muitos municípios disponibilizam terrenos para cooperativas sob condição de uso social por 50 anos. Em Portugal, pelo contrário, o Estado tem alienado solo público sem contrapartidas sociais e com perda irreversível de capacidade de intervenção. A criação de um banco público de terrenos, gerido com transparência e visão estratégica, seria uma medida estrutural para inverter esta tendência.

Financiamentos estáveis

O quarto fator de sucesso é a existência de mecanismos financeiros estáveis, previsíveis e acessíveis. Singapura desenvolveu o Central Provident Fund, uma espécie de fundo de pensões obrigatório que financia a aquisição de habitação pública. A Suécia e a Dinamarca optaram por sistemas de crédito bonificado para cooperativas, acompanhados de garantias estatais. Nestes casos, o Estado não atua como único financiador, mas como garante da viabilidade do sistema. Portugal continua excessivamente dependente de fundos europeus temporários e programas de subvenções com critérios pouco claros. Um sistema financeiro estável, com apoio à compra cooperativa, microcrédito para reabilitação no interior e incentivos fiscais robustos, é uma condição sine qua non para uma política habitacional eficiente. Outra variável importante a considerar é a possibilidade de reconfigurar o investimento para cidadania, de forma a canalizar o capital estrangeiro para as necessidades nacionais, ou seja, promover projetos restritos às necessidades da população através do investimento de capital estrangeiro para a obtenção de cidadania.

Modelo cooperativo

O quinto fator é a participação cívica e comunitária. Nos modelos escandinavos e germânicos, os residentes não são meros inquilinos ou beneficiários passivos: são cogestores das suas casas. As cooperativas de habitação na Suécia (HSB, Riksbyggen) e na Dinamarca (andelsboliger) operam com sistemas democráticos de decisão, orçamentos participativos e responsabilização direta. Esta estrutura não só garante melhor manutenção e maior eficiência, como reforça o capital social das comunidades. Em Portugal, a cultura cooperativa está subdesenvolvida, muitas vezes confundida com caridade ou com burocracia. Reabilitar o tecido cívico da habitação é um desafio cultural e institucional, mas crucial para qualquer ambição de mudança duradoura. Este modelo requer incentivos fiscais e desburocratização dos sistemas.

Habitação vs. Especulação

Finalmente, o sexto fator é a dissociação entre habitação e especulação. Em todos os modelos de sucesso, os mecanismos de contenção da valorização excessiva dos imóveis são claros: limites à revenda, contratos de longa duração, regras de uso coletivo, alto volume de oferta, perfilhação dos destinatários. Em Viena, por exemplo, o arrendamento social tem contratos vitalícios com rendas que não ultrapassam 25% do rendimento familiar, lembrando que 60% da população reside em habituação social. Na Dinamarca, as quotas de propriedade cooperativa (andel) têm valores máximos regulados. Estes modelos demonstram que é possível garantir estabilidade residencial, mobilidade intergeracional e justiça territorial sem asfixiar o dinamismo económico. Em Portugal, a habitação tem sido tratada como ativo financeiro, com pouca regulação e incentivos perversos à concentração de propriedade. A criação de políticas fiscais penalizadoras da especulação e a promoção de usos habitacionais sustentáveis são medidas inadiáveis.

A conclusão é clara: uma estratégia de habitação eficaz em Portugal não deve ser copiada de forma cega de nenhum modelo estrangeiro, mas tem de integrar os seis fatores analisados com sensibilidade ao contexto nacional. A resposta habitacional para Lisboa e Porto não pode ser a mesma que para Bragança ou Beja.

O país precisa de uma estratégia dual, robusta e pública nos grandes centros urbanos, cooperativa e regeneradora nos territórios de baixa densidade, uma abordagem que exige engenharia institucional, coragem política e inteligência estratégica. Exige, sobretudo, a assunção de que a habitação não é um bem de luxo, nem um privilégio de mercado, mas uma fonte vital da democracia contemporânea.

No momento em que Portugal enfrenta a maior crise habitacional dos últimos 30 anos, temos uma escolha a fazer: ou continuamos a tratar a habitação como problema reativo ou trabalhamos para mudar. Como qualquer organismo vivo, o sistema urbano precisa de oxigénio, e esse oxigénio, hoje, chama-se habitação digna. A história já nos mostrou o caminho, falta coragem para implementar.

Artigo original publicado no Observador