Opinião
Cidades Sapiens Sapiens
13/11/2023
Na segunda metade do século XX a população mundial duplicou de 3 para 6 mil milhões e recentemente atingiu 8 mil milhões. Destes, 56,9% correspondem a população urbana. É expectável que a população mundial ultrapasse a fasquia dos 9 mil milhões até final de 2037 e que já em 2030 a população urbana supere 60%.
Períodos de guerra e paz, mas também o comércio e a cultura, determinaram e influenciaram o nascimento, florescimento, declínio e extinção das cidades. Progressos nos meios de transportes permitiram o seu alargamento espacial; o desenvolvimento das redes de fornecimento e saneamento permitiram o aumento da sua densidade e os avanços nas técnicas de construção permitiram o crescimento em altura.
No século XX a expansão das cidades fez-se essencialmente sob o modelo modernista, numa estrutura top-down, sem o envolvimento das comunidades, com a criação de zonas funcionais (residenciais, de lazer e de trabalho) e com o foco na promoção do transporte rodoviário (o que contribuiu para o surgimento das cidades-dormitório e o aumento das emissões de gases de efeito estufa (GEE)).
Este modelo parece esgotado perante as dificuldades trazidas pelo aumento da população urbana e pela crise no acesso à habitação, designadamente se tivermos presente o atual contexto de crescentes limitações ao uso do solo (como as resultantes da Lei dos Solos) e as justificadas preocupações com a eficiência energética e sustentabilidade. É essencial ponderar a flexibilidade dos planos territoriais e o aumento da densidade urbana, tudo, naturalmente, à luz de uma cultura de ordenamento sustentável. A promoção de espaços de utilização mista como alternativa ao modelo de zonas funcionais deve assumir maior relevo, designadamente através da promoção da cidade dos 15 minutos. Também a criação de novas centralidades deve ser estimulada. Outro aspeto a ponderar será a utilização dos espaços e edifícios de forma mais intensiva (construção em altura) bem como a revisão das regras obsoletas do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, designadamente aquelas que limitam a adaptabilidade da construção e da reabilitação urbana às novas exigências sociais.
Na configuração das cidades mais sustentáveis é necessário tomar medidas que permitam diminuir os 80% de GEE que estas originam, para tal é ainda fundamental continuar a apostar na criação de espaços verdes, que tanto contribuem para a melhoria da qualidade do ar, da saúde mental e da atividade física. Do mesmo modo, projetos estruturantes que apostem em tecnologias de informação e comunicação, na promoção da locomoção a pé ou bicicleta e na adequação da rede transportes coletivos para os tornar mais abrangentes e acima de tudo fiáveis, são essenciais.
Como no passado, novas centralidades surgirão e cidades prosperarão se forem catalisadoras de inovação, polo de atração de talento, estimularem a investigação e a cultura. Porém, as cidades só serão verdadeiramente viáveis e sustentáveis se souberem criar as condições para o bem-estar de todos os seus habitantes envolvendo-os nos processos de tomada de decisão da sua comunidade, se conseguirem ser comunidades abertas, designadamente acolhendo novos residentes e proporcionando habitação a preços acessíveis.
Para tal é imperiosa a adoção de políticas de planeamento inclusivo e de parcerias entre os sectores público e privado que apostem na educação e inovação e na procura de soluções de habitação que permitam cidades que não excluam ninguém, que sejam verdadeiramente inteligentes, cidades sapiens sapiens. Neste processo de desenvolvimento urbano e de definição de projetos estruturantes não deixemos de ter presente que - como ensina o urbanista e arquiteto Jan Gehl - as pessoas terão de estar no centro: “primeiro a vida, depois os espaços, só então os edifícios – o inverso nunca funciona”.
Rita Alarcão Júdice
Advogada
Artigo original publicado na Coluna de Opinião da WIRE Portugal na Vida Imobiliária https://vidaimobiliaria.com/opiniao/cidades-sapiens-sapiens-2/