Opinião

Crise na habitação: um problema estrutural, não conjuntural

03/04/2023

Crise na habitação: um problema estrutural, não conjuntural

Ana Gomes

Cushman & Wakefield

A apresentação do programa Mais Habitação fez aumentar ainda mais a desconfiança de proprietários e autarquias, pôs em causa o crescimento do turismo e ameaça o investimento estrangeiro.

O mercado da habitação em Portugal tem um grande problema – a falta de oferta para os segmentos de rendimento médio e baixo, sobretudo para quem compra ou arrenda a sua primeira casa. Construiu-se muito pouco a partir de 2008. E, não se constrói mais porque a maioria dos projetos para o segmento médio pura e simplesmente não têm viabilidade financeira. Este não é um problema de hoje, mas agravou-se bastante nos últimos anos, devido essencialmente a três razões:

  • a carga fiscal excessiva (Só o IVA e IMT impactam, diretamente, em mais de 30% do custo de uma casa nova),
  • a demora e complexidade do licenciamento (cada trimestre de atraso no licenciamento de um projeto agrava a rentabilidade e pressiona o valor de venda)
  • a subida generalizada dos custos de construção.

Os custos de promoção são, muitas vezes, superiores aos valores que muitas famílias podem pagar, pelo que os promotores não estão motivados em investir em projetos com níveis de risco tão elevados. Por outro lado, há muita procura. Obviamente, com um grande desequilíbrio entre oferta e procura, os preços têm de subir, até para as casas usadas.

A oferta também é muito reduzida, pela inexistência de um mercado profissional moderno de arrendamento. Portugal é o único país da Europa onde, na última década, não foram construídos edifícios com escala para o mercado de arrendamento. Aqui, mais uma vez, a conta não fecha. A carga fiscal é excessiva, fazendo aumentar as rendas a pagar pelos potenciais inquilinos. Os tempos de licenciamento são absurdos, o RGEU (Regulamento Geral das Edificações Urbanas) está completamente desadequado, face à eficiência dos projetos, às necessidades das pessoas e aos novos conceitos de habitar, e há uma falta de confiança generalizada no regime de arrendamento urbano – atestada pela incapacidade demonstrada pelo Estado para regular, com justiça e celeridade, as relações entre senhorios e inquilinos.

Outro problema é a falta de habitação pública, especialmente de projetos de arrendamento acessível. Muitos projetos foram anunciados nos últimos anos, tanto pelo Governo como pelas autarquias, mas nenhum avançou. Mais uma vez, não eram viáveis financeiramente, mesmo com terrenos municipais em concessão a privados – as rendas previstas não cobriam os custos de promoção e de operação. O Estado também pouco ou nada construiu.

A verdade é que nos últimos 8 anos as taxas de juro estiveram algum tempo negativas, o que facilitou muito a compra de casa para muitos portugueses. Contudo, não houve acompanhamento na criação de mais oferta. Ao mesmo tempo, houve uma maior aposta na reabilitação urbana por parte dos promotores devido, fundamentalmente, à constituição das Áreas de Reabilitação Urbana e à implementação de uma série de benefícios fiscais (IVA reduzido, isenção de IMT e IMI, etc.). Na altura em que as cidades e o país mais precisaram, houve visão e uma estratégia clara para fomentar o investimento e a criação de riqueza. Não é essa a situação que, atualmente, enfrentamos.

Uma das medidas anunciadas a 16 de março pelo Governo é a utilização coerciva de propriedades privadas devolutas para colmatar a falta de habitação. Uma medida destas vinda de um Estado que não sabe que património tem, em que condições está e que não o tem sabido gerir eficientemente é muito questionável. De uma forma geral, a apresentação do programa fez aumentar ainda mais a desconfiança de proprietários e autarquias, pôs em causa o crescimento do turismo – a actividade económica que mais contribuiu para o crescimento do PIB nos últimos anos – e ameaça o investimento estrangeiro. Mas, acima de tudo, não foi apresentada uma verdadeira iniciativa que promova a construção de mais habitação e que ponha o mercado a funcionar a favor das pessoas que precisam de casa.

Desta forma, a sensação que se mantém é que o Estado não tem capacidade, nem recursos, para produzir habitação em larga escala, e precisa de criar condições (legais, fiscais e de licenciamento) para os promotores colocarem no mercado grande número de casas para compra e arrendamento para a classe média. Um problema que, infelizmente, o programa Mais Habitação não resolve, uma vez que este mostra, acima de tudo, uma enorme falta de visão e uma incapacidade de perceber que hoje não temos uma crise conjuntural, temos sim um problema estrutural que, se não for devidamente tratado, vai resultar num caos social no médio prazo e no esvaziamento e empobrecimento do país.

Artigo Publicado no Jornal Observador