Opinião

O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita: mais uma simplificação

14/03/2023

O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita: mais uma simplificação

Rita Alarcão Júdice

PLMJ

Ao longo das últimas décadas, os atrasos no licenciamento urbanístico são apontados como um dos principais custos de contexto à efetivação de uma verdadeira política de reabilitação urbana das nossas cidades e ao desenvolvimento económico do nosso país.

O tema é recorrente e invariavelmente a solução apresentada é a mesma: a alteração da lei. A simplificação dos procedimentos, a concessão de deferimentos tácitos, o ajuste aos prazos (e conteúdos) de decisão são essenciais, como o são também a digitalização, a aposta em plataformas eletrónicas e, até, a introdução de mecanismos de AI na gestão dos processos. Medidas que são tão essenciais quanto urgentes, mas que, como qualquer inovação, têm de enfrentar a difícil batalha da inércia. Veja-se, por exemplo, o regime da comunicação prévia: volvidos mais de 7 anos sobre a alteração que redefiniu este instrumento como uma mera declaração, são poucos os municípios que o aplicam corretamente.

Esta é a visão de quem, no quotidiano, se debate com a necessidade de explicar a diferença entre:

(i) o que a lei prevê e o que é a prática;

(ii) os prazos legais e os prazos em média praticados;

(iii) as diferentes interpretações sobre a mesma matéria em cada município ou em função dos interlocutores.

Programa "Mais Habitação"

Nas últimas semanas, com a apresentação do Programa “Mais Habitação” assistimos novamente à avaliação de um diagnóstico em tudo similar da “doença” e à prescrição de igual “receita”.

Entre estas medidas anunciadas destaca-se a autorização ao Governo para que este proceda à revisão do procedimento de comunicação prévia, determine o deferimento liminar com base em termos de responsabilidade, estabeleça a obrigatoriedade de submissão dos projetos, a partir de 2025, de acordo com a metodologia BIM (Building Information Modeling) e crie um sistema de pagamento de juros de mora pelos municípios e entidades externas em caso de incumprimento dos prazos legais.

Apesar de ainda serem desconhecidos os exatos termos em que o Governo pretende concretizar esta autorização, uma questão subsiste:

O que terá de ser feito para que mudando muito não fique tudo na mesma?

O problema dos atrasos do licenciamento é complexo e estrutural, com muitos fatores que o influenciam:

  • a inadequação e inflexibilidade dos planos municipais,
  • a necessidade de garantir uma conciliação de vários regimes de proteção e restritivos,
  • a falta de meios e de recursos de quem o aplica diariamente,

onde nos deparamos muitas vezes com a velha inércia, a confortável inflexibilidade e, claro, o medo de errar (e de decidir) aliado, por vezes, a um distanciamento e desconfiança em relação ao sector privado.

Os entraves que acabámos de referir refletem-se, com especial intensidade, no atraso sucessivo da implementação de uma verdadeira política de regeneração urbana a nível nacional. Se, por um lado, temos municípios com planos municipais com mais de 30 anos, que necessariamente não podem refletir qualquer estratégia municipal (não só neste domínio, como em todos), por outro lado, temos municípios cujos instrumentos são demasiado rígidos e inflexíveis, com regras excessivamente impositivas, como a proibição de demolições, a obrigatoriedade de manutenção de materiais construtivos e até a definição das cores dos edifícios.

É este um problema da regulamentação geral?

Se o licenciamento se faz a partir das regras dos planos e dos regulamentos municipais, o problema tem de ser resolvido também aqui e nesta sede.

Paralelamente, é também na reabilitação urbana que mais surgem problemas de articulação entre as diversas entidades e, em alguns casos, de articulação entre os próprios serviços municipais. Isto sucede, designadamente, em matéria de salvaguarda do património cultural, campo em que, pela importância, subjetividade e excessiva discricionariedade de análise, se assiste, na maioria das vezes, à necessidade de repetida alteração / adaptação de projetos, à emissão de novos pareceres sobre temas já apreciados e, em consequência, ao atraso por largos meses da aprovação dos projetos, tornando impossível definir, com rigor, qualquer calendário de execução e, por conseguinte fazer um planeamento adequado, designadamente quanto aos custos e execução da obra.

E este é um problema meramente legal?

Ainda que tenha sido criado um regime especial para a reabilitação urbana, a verdade é que a falta de recursos e meios da nossa administração municipal tem limitado a execução das operações de reabilitação urbana, levando a que, muitas vezes, as mesmas ou não sejam aprovadas ou sejam executadas exclusivamente por iniciativa dos proprietários, empurrando-os para sistemas de cooperações entre si, que se arrastam (ou que fracassam) por falta de consenso.

E este? É também um problema meramente legal?

Por outro lado, um dos problemas que este setor tem enfrentado é na definição do próprio conceito de reabilitação urbana. Se há municípios que consideram que as áreas de reabilitação urbana podem (e devem) abranger áreas de transição e grandes espaços de infraestruturas e de equipamentos que se tornaram obsoletos, outros há com uma visão redutora, concentrando este esforço apenas nos centros históricos. A isto acresce a constante imposição de requisitos materiais e formais pela Autoridade Tributária, redundando em interpretações sempre cada vez mais restritivas do âmbito da aplicação da taxa reduzida de IVA às empreitadas de reabilitação urbana.

Será que a lei deve funcionar como mecanismo para corrigir aquilo que é a praxis?

É evidente que a legislação precisa de ser alterada, melhorada e inovada. Mas igualmente evidente é o facto de este mecanismo não ser suficiente. É, pois, necessário investir numa cultura de ordenamento (sustentável), numa maior dinâmica e flexibilidade dos planos territoriais, na uniformização de procedimentos e na disponibilização de meios, na alocação de recursos à formação e numa maior transparência e proximidade entre os vários players.

Por fim, e em sentido inverso, há pelo menos uma matéria em que, qualquer alteração que se faça, peca por ser demasiado tardia: a alteração do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), diploma que tantos obstáculos tem introduzido na atividade da construção e da reabilitação urbana em particular. Depois da experiência do regime excecional de reabilitação urbana, já era afinal tempo de se procurar criar um regime que fosse reflexo da necessidade de simplificar a regulamentação existente e se focasse apenas em assegurar as principais preocupações com a segurança do edificado.

Agarre-se, portanto, esta vontade de legislar e ponha-se a mesma, sem bandeiras ou publicidades, ao serviço da prática, da técnica e, assim, do futuro sustentável que todos queremos.

Artigo Publicado no Público Imobiliário por Rita Alarcão Júdice e Micaela Giestas Salvador
sócia e co-coordenadora da área de Imobiliário e Turismo / associada sénior na área de Público da PLMJ